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M E N S A G E M  Nº  64/2022

Excelentíssimo Senhor

Vereador ROBERTO GOMES FAÇANHA

Presidente da Câmara Municipal de Corumbá

Tenho a honra de dirigir-me a Vossa Excelência e, por seu intermédio, aos demais Excelentíssimos Senhores Vereadores para comunicar, na forma autorizada pelo art. 65, §1º da Lei Orgânica do Município, que optei pelo VETO TOTAL ao Projeto de Lei nº. 086/2022, o qual “Institui a Política Pública do Município para Garantia, Proteção e Ampliação dos Direitos das Pessoas com Transtornos do espectro Autista (TEA) e seus familiares, e dá outras providências”, pelos fatos e fundamentos que passo a expor.

RAZÕES DO VETO

I-     RELATÓRIO:

O respectivo Projeto de Lei pretende instituir a Política Pública do Município para Garantia, Proteção e Ampliação dos Direitos das Pessoas com Transtornos do espectro Autista (TEA) e seus familiares. O projeto consiste, resumidamente, em diversas ações com fito de promover a garantia, bem como a ampliação dos Direitos das Pessoas com Transtornos do espectro Autista, por meio de politicas públicas positivas.

II - DA ANÁLISE DA MATÉRIA:

II - (A) ART. 24, INCISO XIV, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA

Inicialmente, cumpre-nos consignar que a discussão relativa a vício de iniciativa no processo legislativo é de inegável relevância dos pontos de vista jurídico e político, mormente quando se cogita desrespeito à competência privativa do Chefe do Poder Executivo.

O Projeto de Lei em questão tem o condão de criar o programa com fito de promover a garantia, bem como a ampliação dos Direitos das Pessoas com Transtornos do espectro Autista, por meio de politicas públicas positivas, envolvendo a saúde, assistência social e a educação.

Pois bem , por meio do Projeto de Lei em comento, o Poder Legislativo institui política pública que criará obrigações às secretarias municipais, mais especificadamente à Secretaria Municipal de Assistência Social e Cidadania e Secretaria Municipal de Educação, na medida em que impõe a esta obrigações na execução das ações ora mencionadas, inclusive no Projeto Político-Pedagógico das unidades escolares.

Dá análise do art. 4º do PL, estaria sendo criado o Cadastro Municipal das Pessoas com Transtorno do Espectro Autista, entretanto, o referido cadastro já existe no município, conforme Lei nº. 2.740, de 29 de setembro de 2020.

Ademais, trata-se, porém, de iniciativa legislativa reprimida por insanável vício de constitucionalidade. Destaca-se, logo de início, que a discussão aqui não gira em torno do mérito da propositura, mas sim sobre a existência de óbice constitucional à sua promulgação.

No plano material a inconstitucionalidade decorre da inobservância da regra insculpida no artigo 24, inciso XIV, da Constituição da República. É que o sistema de repartição de competências legislativas consagrado pela Constituição Federal excluiu os Municípios do rol dos Entes Públicos autorizados a legislar sobre a proteção das pessoas com deficiência, in verbis:

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

XIV - proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência;

Evidente, portanto, que o Constituinte reservou somente à União e aos Estados, concorrentemente, a competência para tratar em lei da questão atinente à proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência, não sendo os Municípios recepcionados pela Carta Maior para legislar sobre a matéria, sobretudo, instituir políticas com diretrizes e mandamentos gerais para esta população.

Colecionando doutrina do Eminente Ministro do STF, Luís Roberto Barroso ensina que:

“...expressa uma incompatibilidade de conteúdo, substantiva, entre a lei ou ato normativo e a Constituição. Pode traduzir-se num confronto com uma regra constitucional (...) ou com um princípio constitucional (...). O controle material de constitucionalidade pode ter como parâmetro todas as categorias de normas constitucionais: de organização, definidoras de direitos e programáticas (...). O reconhecimento da inconstitucionalidade de um ato normativo, seja em decorrência de desvio formal ou material, produz a mesma consequência jurídica: a invalidade da norma...”. (in Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro - Saraiva - SP, 2009. 3ª Ed. rev. e atual. pag. 29) - grifo nosso

O Autismo, em qualquer de suas manifestações, é considerado deficiência pelo ordenamento jurídico e, em razão disso, a questão da competência para legislar sobre o tema é alcançada pelo disposto no artigo 24, inciso XIV, da Constituição Federal. Políticas públicas de proteção a grupos vulneráveis são desejáveis e necessárias, mas a sua formulação deve respeitar os limites das competências normativas dos entes federativos, delineadas pelo constituinte.

Essa é, inclusive, entendimento da mansa e pacífica jurisprudência, vejamos:

VIOLAÇÃO AO ARTIGO 24, INCISOS I, IX, XIV E PARÁGRAFOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E AO ARTIGO 144 DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL COMPETÊNCIA CONCORRENTE DA UNIÃO E DOS ESTADOS COMPETÊNCIA MUNICIPAL MERAMENTE SUPLEMENTAR AUSÊNCIA DE PECULIARIDADES LOCAIS QUE PUDESSEM JUSTIFICAR O INTERESSE LOCAL PREVISTO NO INCISO I, DO ARTIGO 30 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL MATÉRIA, ADEMAIS JÁ TRATADA PELAS LEIS FEDERAIS Nº 12.933, DE 26 DE DEZEMBRO DE 2013 E Nº 13.146, DE 6 DE JULHO DE 2015.  A competência, pois, para tratar da questão jurídica trazida à baila é concorrente entre a União e os Estados, estes, de forma meramente suplementar. Aos Municípios, por sua vez, resta apenas a competência legislativa residual, e esta que deve estar adstrita ao interesse local, descrito nos incisos I e II, do artigo 30 da Constituição Federal. A questão da gratuidade de acesso aos portadores de deficiência tem abrangência nacional e não pode ser tratada de forma diferente em cada um dos Municípios, embora diante da ausência da regulamentação da matéria pela União, possam os Estados legislar a respeito. A União, no entanto, editou a Lei nº 12.933, de 26 de dezembro de 2013, que regulamentou o benefício de meia entrada, para estudantes, idosos e pessoas com deficiência e jovens de 15 a 29 anos. (ADIN nº 2044346 - Município de Sorocaba - Rel. Des. Amorim Cantuária - V.U. - j. 26/07/2017) - grifos nossos

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei n° 4.474 de 2011 do município de Suzano, que dispõe sobre a obrigatoriedade de equipamento de segurança para resgate de pessoas com deficiência motora ou mobilidade reduzida. Matéria que não se insere na competência legiferante do município, ausência de interesse local. Ofensa ao art. 144 da constituição estadual. Criação de despesas ao erário sem indicar a respectiva fonte de custeio. Impossibilidade. Inconstitucionalidade reconhecida. Ação procedente. (ADIN nº 0011792 - Município de Suzano - Rel. Des. Campos Mello- designado - j. 27/06/2012) - grifo nosso

Neste aspecto, conclui-se que o princípio federativo, estruturante da organização política e administrativa brasileira (arts. 1º e 18, Constituição Federal), albergado como cláusula pétrea (art. 60, § 4º, I, Constituição Federal), assenta-se na repartição de competências, tendo a Constituição Federal de 1988 arrolado na esfera de competência normativa concorrente federal e estadual a proteção e a integração social da pessoa com deficiência (art. 24, XIV).

II - (B) DAS ATRIBUIÇÕES PRIVATIVAS DO PODER EXECUTIVO: .

Embora meritório o incentivo do Legislativo local, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma diz respeito a atos inerentes à função do poder executivo.

Embora não esteja cristalino na proposta, obviamente as atribuições e imposições contidas no PL competirão ao Executivo, através de seus órgãos governamentais (Secretaria da Saúde, Secretaria da Assistência Social e Cidadania e Secretaria Municipal de Educação), o que caracteriza interferência nos atos de organização administrativa que, inclusive, são capazes de gerar despesas não programadas pelo Executivo na lei orçamentária. Nessa linha, é importante lembrar que, nos termos do artigo 61, § 1º, inc. II, alínea “b”, da CF/88, é privativa do Chefe do Executivo a iniciativa para projetos que disponham sobre organização administrativa.

É o que percebemos da análise do art. 9º do PL, que traz a seguinte redação: Incube a município assegurar, criar, desenvolver, implementar, incentivar, acompanhar e avaliar a inclusão de pessoa com TEA na Rede Municipal de Ensino (...). Ainda, no §1º do art. 9º o PL impõe obrigações às unidades escolares por meio do Projeto-Político Pedagógico.

Nos mesmos termos, o art. 15 do PL, vincula a Secretaria Municipal de Assistência Social e Cidadania a imposição de diversas atribuições, como por exemplo: coordenador e acompanhar (...), fomentar e promover (...), contribuir, articular e coordenar (...).

Imperioso consignar que, a forma de prestação dos serviços públicos é matéria de preponderante interesse do Poder Executivo, já que é a esse Poder que cabe a responsabilidade, perante a sociedade, pela eficiência da Administração.

Para os fins do direito municipal, relevante é a observância das normas previstas na Constituição Federal e Constituição Estadual no que diz respeito à iniciativa para o processo legislativo, uma vez que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição do Estado do Mato Grosso do Sul, conforme preveem os seguintes artigos, vejamos análise das normas:

CONSTITUIÇÃO FEDERAL

CONSTITUIÇÃO ESTADUAL MS

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

VI - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos;

Art. 89. Compete privativamente ao Governador do Estado:

IX - dispor sobre a estrutura, atribuições e funcionamento dos órgãos da administração estadual;

Sendo assim, a iniciativa do processo legislativo para criação de políticas públicas, funcionamento de serviços municipais e atribuições às secretarias municipais é privativa do Poder Executivo, pois, como assinala Manoel Gonçalves Ferreira Filho “o aspecto fundamental da iniciativa reservada está em resguardar a seu titular a decisão de propor direito novo em matérias confiadas à sua especial atenção, ou de seu interesse preponderante” (Do Processo Legislativo, São Paulo, Saraiva, p. 204).

Por esse motivo, a Constituição Estadual, no inciso IX, do art. 89, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, consequentemente, sobre os serviços públicos por ela prestados, direta ou indiretamente. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 17, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios, entendimento já consolidada pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Neste sentido, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Assim sendo, se a Constituição atribuiu ao Poder Executivo a responsabilidade pela prestação dos serviços públicos, é evidente que, pela teoria dos poderes implícitos, a ele deve caber a iniciativa das leis que tratem sobre a matéria. Essa teoria dos poderes implícitos - implied powers - surgiu no voto de Marshall, proferido no leading case McCulloch versus Maryland, de 1819, afirmando que, quando o Governo recebe poderes no sentido de cumprir certas finalidades estatais, dispõe também, implicitamente, dos meios necessários de execução. “Se o governante tem atribuições para praticar certos atos, cabe-lhe igualmente exercer aquelas que possibilitem seu exercício” (Caio Mário da Silva Pereira, em “Pareceres do Consultor-Geral da República”, v. 68, pp. 99-100).

III - (C) DAS DESPESAS SEM INDICAÇÃO DE FONTE DE RECURSO E ESTIMATIVA DO IMPACTO ORÇAMENTÁRIO-FINANCEIRO.

Dá análise do art. 16, o PL dispõe que as despesas decorrentes da execução desta Lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessárias. Entretanto, o PL não fora instruído com o mínimo de detalhamento de seu impacto orçamentário, inclusive, para que o Poder Executivo possa analisar se existe ou não possibilidade de sua implementação, sem ferir o orçamento já construído para o exercício de 2023.

Explica-se que o Projeto de Lei além de impor diversas obrigações e atribuições as Secretarias Municipais, órgãos integrantes do Executivo, gerará gastos não previstos pelo Poder Executivo, provocando mais uma inconstitucionalidade objetiva da norma por patente violação do artigo 167, I e II, da Constituição da República Federativa do Brasil, que tem escopo normativo fielmente reproduzido no artigo 165, I e II, da Constituição do Estado de Mato Grosso do Sul , in verbis:

São vedados:

I - início de programas, projetos e atividades não incluídos na lei orçamentária anual;

II - a realização de despesas ou assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais;”

Ainda, verificou-se que Projeto de Lei ora apreciado não indicou a fonte de financiamento para suportar as despesas para cumprimento e desenvolvimento da atividade. Sobre o tema, a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº. 101, de 04 de maio de 2000), menciona que:

Art. 15. Serão consideradas não autorizadas, irregulares e lesivas ao patrimônio público a geração de despesa ou assunção de obrigação que não atendam o disposto nos arts. 16 e 17.

Apenas por amor ao debate, ainda é necessário comentar que o artigo de Lei Municipal impugnado desrespeita o artigo 129, da Lei Orgânica do município de Corumbá, in verbis:

Art. 129 Nenhuma lei que crie ou aumente despesa será executada sem que dela conste a indicação do recurso para atendimento do correspondente encargo.

Neste sentido, em que pese a louvável intenção do Parlamento municipal em promover a qualidade de vida e instituir uma política sólida, a inconstitucionalidade dos dispositivos do Projeto fica evidente, uma vez que traz um conjunto de ações e atribuições que impõe, inclusive, reserva de orçamento para tanto.

Assim sendo, para o devido atendimento às determinações citadas no Projeto de Lei ora apresentado deveria constar a estimativa do impacto orçamentário-financeiro a ser causado pela implementação de tal medida.

III. DISPOSITIVO FINAL

Assim, embora sejam admiráveis a justificativa e os termos do PL, diante dos apontamentos acima alinhados, o Projeto de Lei não pode ser sancionado, vez que, em assim sendo, estar-se-á legislando sob a égide da ilegalidade, em razão de padecer de vício de inconstitucionalidade formal, nos termos dos tópicos deste, razão pela qual apresento veto integral e total ao Projeto de Lei em questão, rogando aos Senhores Vereadores sua manutenção pelas razões ora expostas.

Destacamos que, nada impede, contudo, que a proposta seja remetida ao Executivo sob a forma de indicação, com base no artigo 173 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Corumbá, para que, pela via política, o Prefeito apresente no âmbito de sua competência o projeto ao Legislativo, afastando assim, a ocorrência do vício de iniciativa.

PREFEITURA MUNICIPAL DE CORUMBÁ,

EM 21 DE NOVEMBRO DE 2022

MARCELO AGUILAR IUNES

PREFEITO DE CORUMBÁ